terça-feira, 2 de setembro de 2008

Capítulo 2 "Dia de Jogo"

− Uma caixa? Compra logo cinco nessa porra!
Ao telefone, Jota Pê programava assistir o jogo do Timbápue em sua casa.
− Velho, cinco caixas pra três pessoas? Você é maluco?
− Quatro pessoas. Eu, você, Breno e Preto.
­− Preto vai? Ele não disse que ia assistir no Damasco?
− Sei lá, chama o cara de novo.
− Jota, vou comprar duas caixas só. Daqui a pouco tou chegando aí.
Sam desliga o telefone sem se despedir e procura a carteira. Depois de algumas gavetas reviradas, encontra-a na cabeceira da cama.
Domingo. Dia de jogo era sagrado para qualquer torcedor fanático do TFC (Timbápue Futebol Clube). Pela tevê ou no estádio, os quatro companheiros sempre – ou quase sempre – assistiam ao jogo juntos. Na verdade só viam pela tevê quando precisavam economizar dinheiro. Como agora.
Saindo de casa, Sam passou no armazém do lado de seu edifício e comprou duas caixas de Nova Schin em lata. No caminho do prédio de Jota, ele viu e ouviu diversos carros passarem buzinando, foliando, numa algazarra entorpecente. Os gritos dos torcedores do TFC que iam para o Damasco – estádio do Pedralima Futebol Clube – agitavam todo o bairro da Alvânea.
Era Timbápue contra Pedralima, ou seja, a Baixada Alvanesa contra os Mineiros. Todo o pessoal da baixada se deslocava ao estádio do Damasco. Este jogo clássico dos times mais fortes do estado explodia a cidade. Os dragões rubro-negros combatiam contra as toupeiras verdes.
− Chega mais, brother.
Jota abria a porta de sua casa.
− Nova Schin? Mentira, man. Puta que pariu! Não dava pra pegar Skol não, velho?
− Sairia cinco conto mais caro. Eu só tinha uns dois reais extras e o armazém não aceitava cartão. – Sam se defendia, colocando as caixas na cozinha. – Ta tudo quente, mas daqui a uns vinte minutos devem começar a gelar.
− Ótimo, o jogo começa daqui a dez minutos. Vou perder dez minutos de jogo tomando coca-cola e coçando o saco. – Disse Jota ironicamente.
Ouviram-se várias batidas na porta tocando um ritmo de pagode agitado. Ao abrir a porta, Breno entra no apartamento quarto e sala se jogando no sofá de Jota. Os três, dentro do recinto, usavam camisas do Timbápue, mas só Breno veio com camisa de material de torcida.
− Porra! De fuder essa camisa, man. Pegou onde?
− Um primo meu me deu. Serviu de boa em mim. – Breno se ajeitava melhor no sofá, tirando o volume do cabelo louro e liso do rosto. – Cadê Preto?
− Sam! Cê ligou pra Preto? – gritou Jota.
Na cozinha, Sam – que estava terminando de colocar as latas no congelador – sentiu uma pontada fina no estômago. Ele não tinha ligado pra Preto. O amigo tinha dito a Sam que ia assistir ao jogo no Damasco. Mas ele ficou de convencer Preto a assistir no apartamento de Jota com toda a velha guarda.
− Velho. Eu esqueci.
− Mentira, man. Porra. você é abestalhado mesmo, né?
Jota pegou o telefone na cômoda bagunçada da sala e discou o número do amigo.
− Cadê as cervas, Samuca? – Perguntou Breno, chamando Sam por um apelido menos usado pelo grupo.
Sam saiu da cozinha e sentou no sofá da sala ao lado de Breno.
− Tão quentes, ainda.
− Sabia que Edmundo nem vai jogar? – Breno puxava assunto.
− Oxe! Por que não?
− Tá na reserva. Nunca o vi não jogar como titular do time. Esse técnico é doente.
− Sem ele no ataque o Timbápue pára. Quem entrou no lugar?
− Nem sei. Na verdade isso é só boato que tão jogando por aí. Talvez nem seja fato.
Ao fundo, perto do quarto, ouvia-se Jota falando com Preto. Ele tentava convencê-lo a não assistir o jogo no Damasco, mas sim no apartamento.
Na tevê, passavam algumas propagandas de artigo esportivo que aproveitavam a data e o horário específico para divulgar seus produtos.
− Comprei uma chuteira nova. – Breno mudou de assunto.
− Aê! Finalmente, velho. Aquela vermelha tava toda fudida no seu pé.
− Acabou-se meu dinheiro do mês. – Breno e Sam riram alto.
− Velho, Preto não vem.
Jota já havia desligado o telefone e sentou-se no sofá com os amigos.
− Porra. Que mole do cara. Deve ser a primeira vez que a gente assiste a um jogo separados. – Breno lamentava.
− Começou!
Na tevê, começava a partida. O time rubro-negro do Timbápue tinha a posse de bola no meio do campo. Quando a contagem se iniciou, foi um show de passes tanto certos quanto errados. Mas nenhuma finalização, nem sequer uma falta ou saída na lateral. A primeira angústia só ocorreu quando um atacante do Pedralima correu veloz driblando os adversários, mas foi parado com um carrinho da defesa e errou a falta. O tédio provocado por passes e mais passes pendurou até meia hora de jogo.
− Porra. Namoral. Esse time não anda. – Resmungou Sam, levantando do sofá e indo pegar três cervejas no congelador.
− Claro! Sem Edmundo não tem como atacar. Esse técnico filho da puta é do tipo de segurar craque.
− Breno, Edmundo tem trinta e poucos anos. O cara cansa rápido pra porra. Perceba que em todo jogo ele só manda ver no primeiro tempo. O técnico fez certo em colocar ele pro segundo tempo. – Jota argumentou. Um dos únicos assuntos que Jota Pê se interessa em estudar de verdade é futebol.
− Êta, Porra!
− Fudeu!
Jota e Breno se levantaram rápido e ficaram em uma mistura entre em pé e sentado típica de torcedor angustiado. Sam veio correndo da cozinha, quase deixa cair uma cerveja.
Um atacante do Pedralima foi puxado enquanto corria à área do gol. Uma falta perto do goleiro do Timbápue era o que todo torcedor alvanês temia. Na televisão se ouvia: “Como um pênalti! Esta falta favorecendo o Pedralima é como um pênalti para o Timbápue! César ajeita a bola e se prepara para chutar. O goleiro ajeita a barreira e se prepara para defender!”.
O silêncio que se provocara no bairro foi tão ensurdecedor quanto no início do jogo.
O atacante do Pedralima afastara-se pra chutar.
Parou.
Correu.
Chutou.
Gol.
− Puta que pariu! Desgraça! Caralho!
− Filho da puta! Que miséria!
− Porra! Vá pra merda!
− Goleiro veado do caralho!
− César filho da puta. Tomar no cú viu!
− Desgraça, Samuel! Cê molhou minha perna toda de cerveja, filho da puta!
− Porra! Se esse técnico não colocar Edmundo no ataque agora eu enfio essa lata no cú dele. Caralho!
− Senta, porra. Sai da frente.
Todos se sentaram, mas dessa vez de um modo diferente: desleixados, jogados no sofá, com as latas pra fora do sofá (seguradas por dois dedos) e uma pálpebra mais caída que a outra. Apenas Jota ainda franzia a testa como se misturasse raiva e esperança.
Mesmo com este gol, o jogo continuou o mesmo: passes cá, passes lá. Nenhum técnico fez qualquer alteração. Um tiro de escanteio do Timbápue perdido foi o máximo de emoção que se teve até o fim do primeiro tempo.
− Odeio intervalos. – Exclamou Breno, indo pegar mais cerveja no congelador.
− Pega uma cerva pra mim aê.
− Pra mim também.
No sofá, Jota e Sam se entreolharam.
− Olha o que cê fez, idiota. – Jota apontou para o short molhado na perna direita.
Sam riu. Jota riu também.
− Vou mijar. – Samuel se levantou. – Cê já consertou a descarga?
− Não. É só tirar o tampão e puxar a corda, velho.
− Beleza.
Jota ficou sozinho no sofá. Até perceber que Breno estava demorando muito para pegar somente três cervejas.
− Breno? – gritou Jota Pê.
− Velho! Esses biscoitos aqui são bons pra porra! – respondeu Breno da cozinha.
− Traz pra cá, man. Vai acabar com tudo é?
Breno veio com um pote quase vazio (ou quase cheio) de negresco.
− Porra, velho. Tava cheia essa caceta aê. – Jota enfiou a mão no pote. – E cê nem trouxe as cervas, né? Todo abestalhado.
− Cadê Sam?
− Foi mijar.
− Cê consertou a descarga?
− NÃO!
Ouve-se um barulho de descarga. Sam vem do banheiro consertando o short.
− Véi! Véi! Pega as cervejas lá na cozinha!
− Pega lá! Pega lá!
Meio espantado, Samuel pára e vai à cozinha.
− Rápido que já começou!
A posse de bola no início do segundo tempo era do Pedralima. Jota e Breno disputavam o número de biscoitos. Sam voltara da cozinha logo quando o Breno havia pegado o último do pote. Parou na frente dos dois antes de sentar-se no sofá.
− Porra é essa? Não deixaram nenhum pra mim, né? Que mole, velho.
− Breno comeu tudo.
− Comi mesmo. Se foda. Sai da frente.
Sam deu as cervejas para os dois, mesmo se sentindo injustiçado. Sentou-se no sofá do lado de Jota.
O segundo tempo começou muito mais emocionante. Era perceptível a garra que os jogadores tanto do Timbápue quanto do Pedralima jogavam agora. Com passes mais enfiados e chutes a gol, mesmo de longe (até mesmo do meio de campo), a partida acelerou o coração dos torcedores. Breno, com as mãos fechadas em cima do joelho, suava frio. João Paulo, com os pés batendo no chão freneticamente, demonstrava ansiedade. Samuel, de boca aberta, parado feito uma estátua, esbugalhava os olhos sempre que ficava angustiado.
− Finalmente!
Um atacante do timbápue levou cartão amarelo e foi substituído por Edmundo logo depois. Breno deu um sorriso de canto de boca e bateu com as mãos fechadas nos joelhos.
Pela janela ouviam-se gritos da torcida alvanesa do Timbápue. Edmundo era como um ídolo para todo torcedor alvanês da época. Neste campeonato estadual ele era o artilheiro mais consagrado. Negão careca e de cavanhaque: seu estilo sério e irônico transformava qualquer jogo em um espetáculo (é claro, com ajuda de seus gols sempre chutados a centenas de quilômetros por hora).
− Preto deve estar vibrando lá no Damasco. – pensou alto, Sam.
− Têm quantas cervejas ainda?
− Umas quatro, acho. – respondeu Sam, à pergunta de Jota.
− Breno, pegue lá o resto.
− Oxe! Por que eu?
− Por que cê comeu todos os biscoitos.
Breno resmungou algo inaudível. Levantou-se apressado e voltou da cozinha rápido para não perder um sequer minuto de Edmundo no jogo.
O segundo tempo estava muito emocionante, principalmente agora com Edmundo no ataque. Mas nenhum gol saía. Chutes vinham de todos os cantos e não balançavam a rede em nenhum momento (a não ser por fora). A marcação era pesada, diversas faltas foram provocadas, mas nenhum cartão vermelho por enquanto.
− Vai, vai, vai!
Os três gritaram esta frase clássica. Túlio Ribeiro, meio-campo do Timbápue avançava rapidamente na área do Pedralima.
− Lança pra Edmundo!
Como palavra mágica, Túlio driblou um lateral adversário e lançou uma bola enfiada para Edmundo na cara do gol. Apenas um zagueiro e o goleiro estavam na frente, mas, como de praxe, um chute fortíssimo, praticamente na linha de pênalti, partiu dos pés do artilheiro às redes brancas do gol adversário.
− Goooooooooooooooooooooooool!
− Puta que pariu! Desgraça! Caralho!
− Filho da puta! Que miséria!
− Porra! Vá pra merda!
− Tomar no cú! Caralho!
− “Simbora minha jhonga!” caceta!
Os três pularam juntos, se abraçando e gritando juntamente com todo o bairro da Alvânea. Gotas de cerveja molharam a sala toda, inclusive o sofá, mas Jota (dono da casa) pouco se importava. Qualquer gol do Timbápue era como ganhar na loteria para os quatro amigos. Todos se sentaram felizes no sofá e mais ansiosos ainda. Um empate no meio do segundo tempo, para qualquer torcedor de qualquer time em qualquer jogo, é o mais emocionante, por que mistura esperança com medo, angústia com felicidade e atenção com diversão. O pior nesta hora é que, quando os torcedores estão bebendo, o organismo humano pede renovação da composição sanguínea juntamente com a rápida circulação provocada pelos batimentos acelerados do coração, ou seja:
− Caralho. Quero mijar.
− Nem me fale, tou me segurando aqui.
Dessa vez todos os amigos batiam as pernas freneticamente, mas em nenhum momento desviavam a atenção da televisão. Podiam até desviar os pensamentos. A cena atual, por exemplo, era de um meio-campo do Pedralima cobrando a lateral perto da área do Timbápue: Jota, em pensamento, fingia-se de técnico planejando um modo de roubar a bola do time adversário usando jogadores específicos; Sam, no pensamento, fingia-se de mago repetindo a frase “a bola vai cair nos pés do zagueiro do TFC” a cada segundo; Breno, no pensamento, fingia-se de estilista escolhendo um design melhor para a camisa rubro-negra do seu time.
O jogo seguia desesperador. Já eram quarenta e cinco minutos do segundo tempo. Com um acréscimo razoável de dois minutos, a partida se tornou angustiante. Um ataque cá, outro lá. Até que um meio-campo do Pedralima avançou sozinho na lateral adversária. Seguiu correndo para cruzar.
Cruzamento.
Cabeceio.
Travessão.
Pés.
Atacante.
Zagueiro.
Drible.
Passe.
Puxão.
Queda.
Pênalti.
− Porra! Caralho! Cacete! Desgraça! Puta que pariu! Buceta!
− Filho da puta! Que miséria!
− Porra! Vá pra merda!
− Atacante veado do caralho!
− Juíz Filho da puta. Tomar no cú viu!
− Agora fudeu.
O goleiro do Timbápue já era fraco com faltas perto da área, pior agora com um pênalti na cara do gol.
Os amigos esmurraram porta, parede, cômoda e até mesmo eles próprios. Jota passou a mão no rosto, descendo até o queixo. Breno gritou da janela vários palavrões juntamente com o bairro inteiro. Sam fez algumas caretas como se estivesse enfiando agulhas no nariz.
− Se esse goleiro defender, juro que tiro a roupa e saio pelado pelo bairro, – prometeu Jota. – aliás, saio pelado se, além de defender, o Timbápue fizer um gol de contra-ataque.
− Faço o mesmo.
− Eu também.
Todos os três voltaram para o sofá e franziram a testa. A vontade de mijar passou instantaneamente e foi substituída por uma vontade de rezar. Era sempre assim: com o time ganhando, todos eles cantavam palavrões e oravam para tudo que é, mas na hora da angústia de perda, se tivesse uma estatueta de santo já estavam segurando-a e rezando para qualquer deus de toda religião possível.
Mauro Silva, o melhor atacante do Pedralima ia bater. Ajeitou a bola na marcação de pênalti e deu alguns poucos passos para trás.
TFC e Pedralima lideravam o campeonato. O Timbápue estava na primeira colocação e mesmo que perdessem este jogo continuariam em primeiro. Mas se a emoção do futebol fosse movida apenas de partidas decisivas, não haveriam corações acelerados na maioria dos jogos. Principalmente por parte da Baixada Alvanesa.
Mauro Silva parou, correu.
Um chute leve para o meio e o goleiro para o lado esquerdo: Gol.
− Porra! Caralho! Cacete! Desgraça! Puta que pariu! Buceta!
− Puta que pariu! Desgraça! Caralho!
− Filho da puta! Que miséria!
− Porra! Vá pra merda!
− Goleiro veado do caralho!
− Mauro Silva filho da puta. Tomar no cú viu!
Os amigos esmurraram tudo o que viram pela frente. No bairro só se ouviam os palavrões da torcida que, em sua maioria, era rubro-negra.
A partida durou ainda cinco segundos até o juiz apitar fim de jogo.
− Desgraça!
− Ainda bem que continuamos em primeiro no campeonato. – Sam aliviou a raiva.
− Porra! – Jota desligou a tevê com um empurrão forte no botão. – Arrumem essa caceta aqui.
− Breno e Sam ajudaram João a colocar as latas no lixo, forrar o sofá, limpar o chão, ajeitar as cômodas e colocar o pote vazio na cozinha.
O celular de Breno tocou.
− Peraê. – O loiro pegou o aparelho de cima da própria carteira e verificou quem estava ligando. – Oxe. É Preto.
− Atende aê. Ele deve estar vindo pra cá. Sei lá. – Disse Jota, jogando as latas no lixo.
− Alô! E aí, Negão? Partida fudida, né?
Breno franziu a testa.
− Hã?
Breno esbugalhou os olhos.
− Mentira!
Breno desligou o celular.
− Fudeu, galera.
− Qual foi?
− Prenderam Preto.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Capítulo 1 "Apresentação"

Eram dois.
O primeiro tinha como nome João Paulo, mas o chamavam de Jota Pê (ou só Jota mesmo). Garoto alto e esguio com pele morena clara. Cabelo rebelde e nunca penteado. A lordose e o jeito “jogado” de se andar definiam seu estilo como um rapaz despreocupado e sem muitas idéias. A marra era seu charme. Mas tinha um azar da porra com as mulheres. Socialmente conhecia muita gente, mas não tinha uma relação afetiva de amizade com quase ninguém. Sua vida era praticamente um jogo de experiências e curiosidade: Tinha que fazer tudo que pudesse e, claro, o que não pudesse também. A grana era pouca e seu sustento se baseava na lanchonete em que trabalhava. Nunca precisou de muito dinheiro, pois sempre dava um jeito em tudo. Tudo mesmo.
O segundo se chamava Samuel − ou Sam. Sujeito de tamanho moderado, moreno dos olhos verdes: por isso tinha uma bela sorte com garotas. Além do corpo malhado, seu físico era de um verdadeiro atleta. Talvez seja resultado de tanto pegar o baba. Cabelo curto e duro. Esse era bem tranqüilo e simples. Vivia uma vida pacata sempre que estava longe de seus amigos. Mas quando se juntava ao grupo a agitação predominava. Sua voz meio rouca e grossa, suas camisas regatas e seus tênis exóticos o definiam como um estiloso rapper americano. Mas nunca jogava as idéias pra fora da cabeça. Mantinha a mente aberta para o que viesse e fechada para o que saísse. Com tudo o que estava preso dentro de sua cabeça dava para escrever dez livros.
Os dois haviam se encontrado pela primeira vez no estádio do Parati − pertencente ao Timbápue Futebol Clube (TFC). Logo após a goleada de cinco a um no Guaraniba. A alegria casou com a cerveja e surgiu uma amizade recém nascida. Passaram a se encontrar em todos os jogos do TFC. Depois marcaram de se ver em shows, bares, até viagens. Em apenas três anos já eram irmãos de sangue e fígado.
Tretas rolavam sempre entre eles. Murros e chutes eram mais fortes nas brincadeiras do que nas brigas. Já tinham feito tanta merda juntos que estava difícil achar algo de novo pra experimentar.
Andavam também com outros dois garotos: Um loiro, alto, de pele avermelhada chamado Breno. E “Preto”, um moreno escuro, baixo, bombado e careca − com uma barbixa estilosa. Todos torciam pro Timbápue e formavam o grupo do Terror da Baixada Alvanesa. Três deles moravam no mesmo bairro, mas Preto ficava em outro um pouco distante: só chegavam lá de buzão.
Sexo feminino no grupo era pouco e, quando tinha, já havia sido “rodada” por todos eles. Vida de Solteiro é como um lema para Jota; uma honra para Breno; um caminho para Preto; e uma idéia para Sam.
Não eram temidos, nem taxados. Nem muito conhecidos, nem pouco procurados. Mas nunca ficaram um dia sequer parados no sofá. Estavam sempre por aí. Criando verdadeiras histórias em suas vidas.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Prólogo


Sentados à beira do meio-fio, reclamavam de suas malditas vidas.
− Desgraça. Tenho que trabalhar amanhã naquela merda de lanchonete.
− Vida fácil, a sua. Não precisa carregar sacos cheios de cimento dum caminhão pro outro. Minhas costas tão é fudidas.
Ao mesmo tempo em que carros passavam em alta velocidade, os dois fumavam como chaminés. Conversavam uma mistura de palavras e tosses.
− Esse show foi de fuder. Eu tava querendo espancar uns otários lá. Aqueles que passaram pela nossa frente com duas putas gostosas.
− Tô ligado.
− Pior foi a terceira briga. Quando quebraram a garrafa na cabeça do gringo. Respingou cachaça em mim!
− Tô ligado.
− Eu devia ter espancado esse também. Meu braço tá peguento feito a porra. Próxima vez vou meter o pau neles. Gasto uma grana do cacete pra comprar essa camisa gringa e aquele filho da puta me faz uma coisa dessas.
− A camisa é do Paraguai.
− Sim, meu irmão! Mas é importada, porra!
− Do Paraguai.
− Vai tomar no cu! Custou vinte conto essa desgraça. Tudo isso eu gasto num show desses e ainda sobra!
− Tô ligado.
Um carro a cento e quarenta quilômetros por hora passa pela rua - tão rápido que esvoaça a fumaceira dos dois rapazes sentados.
Da porta saem outras pessoas. Bêbadas e drogadas − ou drogadas e bêbadas. Pisavam falso e berravam risadas. O som do show ficou alto durante um momento e depois voltou a ser abafado pela porta que se fechou.
− Que é que tá rolando agora?
− Forró, pé de serra universitário. O baixista, eu conheço, tocava no palco principal da minha faculdade.
− Faculdade? Você fez faculdade? Há! Não me diga que pagou pra estudar!
− Que nada! Ganhei bolsas de estudo. Eu era um dos melhores estudantes no meu colégio público. Daí o diretor me fez essa proposta.
− Bela sorte a sua. Mesmo assim eu não faria. E como teria minha grana nisso? A faculdade bancaria meu almoço? Minha janta? Meus shows?
− Não, mas você poderia trabalhar à manhã e estudar na tarde.
− Eu trabalho o dia inteiro e ganho uma merda de salário. Imagina se fechasse meu turno apenas pala manhã? Nem vem.
Mais uma vez a porta se abre. Mais uma vez o som se esvai. Mais uma vez um carro passa, como uma rotina urbana de madrugada.
Dessa vez o som não é abafado.
− Vai lá! Eu lhe espero aqui.
Uma jovem de corpo definido desce as escadas do casarão e atravessa a rua, passando pelos rapazes. Vai até uma farmácia. Demora um pouco e depois sai com um saco pequeno na mão.
− Pegou tudo? − o homem que segurava a porta perguntou.
− Peguei. Toma o troco.
− Fique com o troco! Só quero isto. − pegou o saco da mão da garota, entrou com ela e fechou a porta. Daí então o som foi abafado novamente.
− Que coisa era aquela?
− Não sei, cara. Acho que eram alucinógenos medicinais ou alguma merda qualquer. Hoje em dia tão se drogando até com calmante.
− Tô falando da mulher, porra.
Nesse momento surge um carro conversível, cheio de mulheres. Para próximo à farmácia. Saem dois gringos do automóvel e voltam da farmácia com sacos cheios de preservativos e viagra. Entram rindo e sorrindo. Depois somem em alta velocidade.
− Não sei o que essas putas veem nesses otários. Só porque têm um carro de cem mil, dinheiro até pra enfiar no cu e uma oportunidade pra morar fora do país.
− É isso que elas veem neles.
− Um dia eu vou trabalhar como empresário, ganhar uma grana da porra e comprar o carro do ano. Aí vão vir um monte de gostosa pra cima de mim!
− E provavelmente eu, sentado num meio-fio como este, lhe chamaria de otário.
− Calma, velho! Você ia estar comigo também, brother. No carro!
− Legal. Seríamos dois otários.
− Meu irmão, tu é chato pra cacete viu! Me passa a outra carteira que a nossa acabou.
− Tenho não. A última foi esta. Você fumou duas lá no show!
− Que cu! Minha boca vai ficar seca agora!
− Bota palha nela que tranquiliza.
− Onde tu tá vendo palha aqui, desgraça?
− Do seu lado tem um vaso de samambaia. Pega umas folhas.
O rapaz olha pro lado, faz uma cara feia.
− Eu? Botar essas folhas na boca? Tenho cara de retardado, é? Além do mais devem estar todas mijadas.
− Você fuma maconha e reclama de colocar folha na boca.
− Maconha é maconha. Folha é folha, porra!
− Não. Maconha é folha. Mas folha pode não ser de maconha.
− Essa aqui é uma samambaia!
Pausa. Os dois se olham. Testas franzidas.
− Você é um cabeça de jegue mesmo.
− E você é um sunga branca.
A porta se abre. Aparecem outros dois rapazes. Um loiro, alto, pele avermelhada. Outro moreno, baixo, corpo forte e inchado.
− Qual foi, trutas? Tão fazendo o que aí fora? − pergunta o loiro.
− Bicho. Tamos fudidos aqui. Na quinta briga deram a porra dum chute na minha canela.
− Nessa hora eu me saí! − diz o moreno forte, sentando junto ao meio-fio também.
− Por quê? Você é uma bicha mesmo!
− Eu não. Tava sem saco pra ficar levando chute na canela, sabe...
Os quatro, sentados na beira do meio-fio, conversaram durante um longo tempo. Falavam de sexo, drogas e pagode. Contavam sobre várias brigas, vários shows, várias dopadas. A porta do casarão às vezes se abria, denunciando alguém saindo, nunca entrando. Carros em alta velocidade não paravam de passar, mas o recorde mesmo foi daquele que passou a cento e quarenta de quilometragem. A fumaceira do grupo acabou, porque a carteira acabou. De vez em quando uns jovens entravam na farmácia, compravam algo e saíam. Essa rotina durou um bom tempo, até o rapaz loiro se despedir.
− Pois é. Tô me indo agora. Pegar no batente amanhã às seis.
− Eu também, às oito. − responde o moreno.
− Vão passar pela avenida? Uma carona sairia bem agora.
− Pra mim também, se forem passar pelo campo da cidade.
− Vamos passar só pelo campo. A avenida fica do outro lado. − responde o loiro.
− Então beleza. Quer que a gente inteire seu táxi, sunga branca?
− Que nada, cabeça de jegue. Eu vou andando mesmo. Uma paletada, mas é melhor. Assim eu aproveito pra comprar meu café da manhã lá no mercado.
Os três se levantaram acenando pro rapaz.
− Falou, então. − diz o moreno.
− Vê se da próxima vez não cata a garota daquele gangster! O cara te ameaçou de morte, velho!
− Mas ele tava bêbado. E, além disso, aquele ali não mata ninguém. É só do tráfico, tá ligado?
− Tô ligado.
E saíram. Três prum lado. Um pro outro. Uma carteira de cigarros, latas de cerveja, garrafa de vodka, baseado de maconha, tudo no chão. A madrugada estava fria. Poucos carros passavam dessa vez. A brisa noturna derrubou uma das latinhas. Ela foi rolando, caiu do meio-fio, rolou de novo, chegou num bueiro e sumiu.
Sumiu.